Toda vez que o país vive um trauma institucional, surgem vozes clamando por justiça. Muitas vezes, na tentativa de afirmar a firmeza democrática, essas vozes esquecem que o Direito não é um instrumento de vingança, mas de proteção dos direitos. Por outro lado, há quem, apressado em minimizar o que é grave, se perca na tentação do revisionismo político travestido de técnica jurídica. No meio disso, quem deveria proteger o devido processo se vê, muitas vezes, transformado — consciente ou não — no seu próprio inimigo.
Li com atenção o artigo do jurista Lenio Streck, publicado na Folha de S.Paulo ("Não há alternativas para as penas aplicadas aos golpistas de 8 de janeiro", 19.abr.2025), e entendo sua indignação frente à tentativa de golpe. Todo democrata, sem dúvida, deve repudiar o autoritarismo.
Porém, discordo quando o Direito é tratado como uma trincheira ideológica, onde as garantias fundamentais são reduzidas a obstáculos para a punição "exemplar". Não se trata de anistiar. Trata-se de preservar a verdade, sem distorcer.
A democracia nos ensina — ou deveria ensinar — que o Direito Penal só deve ser aplicado com precisão cirúrgica, e não com a pressa de quem quer fazer justiça com as próprias mãos, mesmo que sob o manto da toga.
É tentador concluir que, se a multidão destruiu, então todos são cúmplices. Mas isso é perigoso. Muito perigoso.
Comparar os réus a ladrões de galinha para justificar penas severas não é uma argumentação sólida. Isso é desespero retórico. Ao apelar para a emoção, se apaga o debate técnico e alimenta-se o populismo penal — aquele mesmo que enche as cadeias e diminui as garantias que nos protegem como sociedade.
Claro que há diferenças entre quem arquitetou, quem incentivou e quem foi levado por uma narrativa golpista. A Constituição não é seletiva, e o devido processo não pode ser maleável.
O Estado Democrático de Direito é digno desse nome exatamente quando protege, inclusive, quem o atacou. Caso contrário, torna-se um reflexo do autoritarismo que deveria combater.
A Justiça não pode se transformar em espetáculo. Nem deve se tornar exceção. Dizer que as penas foram aplicadas "no mínimo" porque a lei permite é ignorar o princípio da individualização da pena. O tribunal não pode ser um palco; a sentença, um espetáculo.
Sim, as instituições foram atacadas. Mas a resposta não pode ser um ato de revanchismo. O maior golpe contra a democracia seria permitir que o medo — ou o desejo de punição — silenciasse os limites constitucionais.
O problema não está na alternativa proposta por Davi Tangerino, mas no momento em que não vemos mais alternativa alguma. Quando o Direito vira trincheira e não um verdadeiro instrumento de justiça.
A história não perdoa os excessos. Se a democracia quer vencer o autoritarismo, precisa ser melhor que ele. Inclusive — e principalmente — no momento de punir.
Fraterno abraço!
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